domingo, 28 de fevereiro de 2010

Natal

Era louca e vestia farrapos no corpo e na alma. A cada dia que passava, ouvia menos dos outros e de si mesma. Já não falava e não tinha a menor noção do tempo. Alimentava-se de migalhas, mas era desgraçadamente gorda. Seus únicos bens eram um cachorro e um espelho. O primeiro, um velho vira-lata manco, modelo de três patas, quase cego, com quem vivera nos últimos 14 anos, era responsável pelo resto de afeto que ainda aquecia o seu coração nas noites frias. Já o segundo, sentenciava diariamente sua morte ao refletir-lhe a face deformada por cicatrizes, pés de galinha e pela idade avançada. Ainda se lembrava dos filhos e do casamento. Todos mortos, e ela ali, presa por correntes de vida. Mas não vivia, não morria, não existia e era menos importante do que tudo que também não existia. Nem ao menos tinha um nome e fazia questão disso.
Já era tarde naquele 23 de dezembro. Eu tinha pressa e havia corrido contra o relógio durante todo o dia a fim de encontrar presentes e cultivar as falsidades familiares do dia 25. Ainda faltava o presente da mãe e da vó, e deveria ser algo mais barato que um quilo da minha autoestima, que já não valia muito, de acordo com as estimativas generosas que faziam os amigos e os numerosos inimigos. Certamente, a mãe merecia mais do que receberia, e a vó, muito menos. Se eu não era o neto ideal, ela não era a companhia mais agradável para uma ceia de Natal. Estava velha, acabada e com o mesmo humor contraditório de sempre. Cientificamente falando, ela era como um sistema caótico: um épsilon de perturbação no seu domínio evolutivo poderia gerar catástrofes irreparáveis, descontrutivas. E esse foi o motivo pelo qual o meu vô, um gaúcho paradoxalmente amoroso e covarde, morreu quando era tão jovem. Sucumbiu pela falta de sossego de ter que aguentá-la praguejando incansavelmente. Vestiu-se de culpa pelo passado errante e anulou o futuro com um estampido surdo que adentrou-lhe o cérebro.
Depois de comprar um livro de auto-ajuda para a mãe, eu tive várias idéias sobre qual presente eu daria para a vó. Pensei: roupa? Ela criticaria a cor, fosse qual fosse. Livro? Ela reclamaria do autor, mesmo sem conhecê-lo. Perfume? Ela diria que não gosta da fragrância forte. Uma bomba seria a escolha ideal. Mas presentes desse tipo não estão nas lojas de departamento, além de serem compartilhados com todos que estão em volta do afortunado presenteado.
Esgotei as possibilidades e tomei o caminho de casa feliz por não ter encontrado nada. Afinal, minha avó era uma indulgente e não merecia ser tratada com honrarias. Fui caminhando pela rua e dando consistência ao meu ódio pela vida.
De repente, tropecei em algo. Ouvi um latido. Olhei para baixo e vi um corpo disforme esparramado, vergonhas à mostra. Um cão o velava com fidelidade e tristeza demonstradas tanto pelo rosnado feroz para quem se aproximava quanto pelo choro de desespero ao sentir o cheiro do sangue que escorria pela superfície notadamente orgânica de sua tutora. Ela apodrecia sem pudores. Finalmente rompera o contrato com a vida e regozijava-se no turismo celestial ao lado dos filhos. Conforme suas previsões, feitas ainda no chiqueiro dos vivos, o marido não apareceu para tirar-lhe do espírito a paz alva que lhe permitiram. Sua alma, a dele, era demasiadamente pesada. Descera o máximo que lhe fora possível, e ainda mais. Nem mesmo o maior guindaste do céu conseguiu içá-lo para os domínios da misericórdia.
Aquela mulher havia sido uma advogada influente no Brasil. Sua história de vida é mais diversa que os domingos no calçadão de Copacabana ou na Avenida Paulista. Tivera diversos escritórios e defendera desde pedreiros a industriais. Sempre com a mesma determinação e envolvimento. Mas o casamento a abateu. Seu marido a trocou pela desventura de um amor irresponsável ao lado da perfeita expressão da Jezabel nos dias atuais.
No outro dia pela manhã, véspera de Natal, fui ativo no seu enterro. O único participante da empreitada. Paguei para que lhe deixassem virar pó como gente. Sem saber o porquê, tinha de fazer-lhe justiça, render-lhe uma homenagem. Como herança não atestada em vida, deixou-me o espelho e o cão. Tal fortuna seguiu-me para casa, parte debaixo do braço, parte arrastando-se com as três patas que lhe restava.
Adentrei pela área de serviço. A opressão cantarolava que estava presente. Havia um arco-íris de cheiros da cozinha fluindo pela casa: bacalhoada preparada na baixela preferida da mãe, peru no forno, pernil já pronto sobre a mesa e tortas de maçã e chocolate. Tudo exalava harmonicamente pelos quatro cantos do nosso universo familiar. Na sala, a árvore de Natal acesa esperando a generosidade alheia. Lembrei-me da falta de algo pra dar à vó. Senti pena dela, senti pena de mim. Olhei-me no espelho e então vi o espelho, objeto, presente adequado para ela.
Embrulhei-o. Notei que cumpria bem as suas funções, era crítico, capaz de ampliar as imperfeições e valorizar a positividade. Não dei importância à anotação metalizada em sua lateral.
Tomei banho e desci para o baile da representação. Ali já estavam todos os mascarados, incluindo a vizinha do 302. Sim, ela mesma, que reclama de tudo, inclusive do balançar da minha cama nas noites de alegria. Cumprimentei a todos segundo o princípio da reciprocidade e esperei rangendo os dentes a hora que se aproximava.
23:45 começamos a troca de presentes. A mãe foi a primeira e adorou o novo ferro de passar roupas que lhe dei. Afinal, será mais fácil a tarefa de passar todas as minha camisas a partir de agora. Todos já haviam ido dormir e a vó foi a última a receber o seu pacote. Examinou-o por alguns instantes e abriu-o vagarosamente, criando suspense. Quando tomou o espelho em mãos, seu semblante caiu. Observou a sua imagem refletida, olhou-me nos olhos. Estava de frente com o passado e com o futuro. Lembrou-se de tudo, das maldades que havia feito e do futuro que ainda não havia tocado. Cambaleou, disse-me que era o seu fim e pediu-me perdão por ter existido por tanto tempo diante do meu desespero. Eu perdoei. Ela caiu, e juntamente com ela, o espelho, quebrando-se em infinitos pedaços, formando um fractal. Adentrei em minhas simetrias e quando dei por mim, ela já não existia na minha sala, na minha realidade, em lugar algum do universo. Desesperei-me e num ímpeto tomei a moldura a fim de ler o que encontrava-se escrito em letras góticas: o meu nome.
Procurei então o cachorro. Havia fugido.
Concentrei-me em entender a minha vida. Ao meu lado, na pequena mesinha, o retrato daquela que eu havia enterrado pela manhã. Procurei ao redor. Já não lembrava mais da face do meu ódio outrora personalizado. Um novo tempo começava. Sentia-me leve e presenciava no meu interior a ressurreição de quem precisou morrer por mim para que eu experimentasse a vida e o amor verdadeiros.
Dei por mim e lá estava a doçura à minha esquerda, com um copo de leite quente na mão: Tome, meu neto. É bom para dormir.
Viva! Ela estava mais viva do que nunca. E pela primeira vez, eu também. Então tomei o leite quente, dei-lhe um beijo no rosto e disse-lhe: Vó, não precisa entender, mas obrigado por ter feito tudo isso por mim. Minha vida mudou através da maior herança que alguém pode receber: o amor.
E fui dormir. Afinal, não era Natal. E nem precisava ser...

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O começo dos sonhos.

Faz tempo que eu venho pensando em maneiras de tornar as minhas idéias compreensíveis para as outras pessoas. Não sei o nível de dificuldade de uma tarefa como essa, mas imagino que não seja fácil. E isso não se deve simplesmente ao fato de o meu mundo ser substancialmente complexo, mas também à dificuldade de traduzir as impressões que eu tenho sobre a maioria das coisas. Gosto de precisão. E isso me torna inerte, um fardo para mim mesmo, eu diria.
Vivo na arte de conviver com minhas intransitividades. Tenho lapsos de felicidade extrema e tristeza profunda. Canto no chuveiro, dou boa noite para o jornalista engravatado, sou vítima constante da Lei de Murphy e bebo água para embriagar a minha alma. Falo sozinho na rua e não acredito na morte de Michael Jackson.
No começo do dia, sou apenas mais um ser eletrônico no meio da correria da Rio Branco. Quantos táxis e bancos, quantas gravatas e damas distintas. E quanta pirataria aos nossos olhos nessa avenida tão central! Sim, a pirataria está em nós e a pirataria somos nós. Temos alma made in china na era das revoluções culturais à la Ivete, à la Gaga, à la meu bom Alá. No Carnaval, enfeites pela avenida.
O dia passa. A bateria do iPod acaba. O silêncio dos outros ameaça a minha festa particular. Converso com alguns, tomo café para passar o tempo, imagino como deve ser ter a vida de empresário, presidente, cientista e guia turístico. Mas me surpreendo no alto da minha vassoura e volto a ser um eletrônico sem bateria.
O chão treme, o alarme toca. É incêndio no prédio vizinho, grita a moça que passava pela janela em seu holograma. E todos se refugiam nos terabytes de seus emails. De repente, apagão. Memórias se apagam, vidas se desfazem.
De repente eu acordo. Foi um sonho. Dormi na mesa de trabalho e já são 10 para as 5. Ajeito o meu material e não dou um minuto grátis ao patrão que anda mais estressado desde que começou o caso com a secretária loira e desqualificada. Tomo o elevador do trigésimo terceiro.
Paro num bar da rua transversal e peço uma água sem gás, sem gelo e sem contaminações aparentes. Fico ali rodando junto com a Terra até ter um sentimento. Lembro-me da demonstração do Teorema de Cauchy, das últimas eleições, penso na evolução do país e da sociedade. E então passa um jovem com uma camisa onde se lia "I love NY". Eu o chamo discretamente. Ele se aproxima com educação e resignação. Não digo nada, apenas choro. Choro com força. No abatimento que me toma, minha alma se sobrepõe ao meu corpo inerte na cadeira de metal. Conto até três e desmaio. Quando abro os olhos e encontro-me saindo do elevador. Sonhei novamente, pensei.
Dirigi-me então ao bar onde eu estive há tão pouco tempo. Sentei-me na cadeira de onde caí. Pedi a água que já havia bebido, e também a mesma ausência de gás, de gelo e de contaminantes. Senti-me estranho ao ver um jovem com uma camisa onde se lia dessa vez "Eu amo o Rio". Cheguei a duvidar do que via. Um contentamento agitou a minha realidade. Eu novamente o chamo. Ele atende da mesma forma. Novamente eu não digo nada, apenas rio. Rio com força. Foi quando eu entendi. Eureka! Era mais do que um sonho e era mais que realidade. Era o absoluto.
No fim da noite, eu sou humano na Rio Branco. Ser humano completo, de baterias carregadas. Junto-me à multidão que segue para casa.
Abro a porta de casa e encontro vocês aqui no meu sofá virtual, onde conversaremos até o dia nascer para então descobrirmos um novo Brasil em meio a esse sol que sempre nos iluminou.
Um brinde.

Sergio Mello.